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A diretora que descobriu o motivo de alunas faltarem todo mês: a pobreza menstrual

A diretora que descobriu o motivo de alunas faltarem todo mês: a pobreza menstrual

09 de Outubro de 2021

Ao se tornar diretora de uma das escolas com maior evasão escolar da cidade baiana de Camaçari em 2010, Edicleia Pereira Dias se juntou a outros colegas da educação para descobrir o porquê daquela situação. A primeira hipótese era o trabalho infantil, mas havia algo mais, e a resposta veio apenas dois anos depois.

O motivo foi percebido durante a análise de um gráfico gerado após a equipe começar a incluir as ausências em planilhas. O programa de computador mostrava um padrão comum às meninas: elas faltavam mensalmente e por dias consecutivos. A secretária que atendia a beneficiários de programas sociais chutou a resposta, que se mostraria verdadeira: o período menstrual.

A “pobreza menstrual” era um tema de pouca repercussão na época, e tampouco era tratado em tantos projetos de lei como hoje, a exemplo do vetado nesta semana pelo presidente Jair Bolsonaro (de distribuição de absorventes para pessoas de baixa renda). E também era menos ainda associada ao cotidiano de meninas.

A diretora da escola até conhecia o termo, mas o havia estudado em um curso de especialização em que estava relacionado às dificuldades enfrentadas por mulheres apenadas. Não imaginava até então que atingisse as alunas da instituição de ensino fundamental que dirigia, na periferia da cidade, a Escola Municipal Cosme de Farias.

Hoje com 42 anos, Edicleia e funcionários de diferentes ocupações passaram então a comprar absorventes para as meninas. Os produtos eram embalados com fitas e entregues discretamente, como presentes, junto a outros itens de higiene e cosméticos, para não constranger ou expor as alunas. “Nunca falamos que era algo para ajudar.”

Das primeiras 15 identificadas, o número passou na sequência para cerca de 50 estudantes. “A gente viu que de fato interferiu na dinâmica da escola”, explica a diretora. Segundo ela, meninas chegavam a faltar mais de uma semana ao mês por causa do período menstrual. E a situação também levava algumas à evasão escolar, por não conseguirem acompanhar o conteúdo suficientemente.

“Estou falando de meninas de 10, 11 anos, que às vezes não tem água para tomar banho”, relata a diretora. Aos poucos, também foi criado um código. Bastava ir à sala da direção e deixar a mochila aberta sobre a mesa, sem precisar mencionar nada. A diretora então colocava os absorventes.

Segundo ela, algumas meninas tinham vergonha de pedir ou falar sobre o assunto, tanto que parte dos itens eram repassados entre colegas de turma. “Começou com uma sutileza, para que se sentissem mais confortáveis, que se criasse uma cultura de que naquele ambiente poderiam contar com apoio toda vez que precisassem de absorvente”, justifica.

Com o tempo, a escola passou a disponibilizar os itens em dispensers instalados nos banheiros, mas continuou com a distribuição dos “presentes” para garantir que as meninas estivessem assistidas também fora do horário escolar. Além disso, temas como saúde e cuidados com o corpo passaram a ser tratados em sala de aula. Em 2014, a iniciativa ganhou o nome de Banco de Absorventes, então totalmente mantido por itens comprados pelos próprios funcionários.

A situação mudou de vez cinco anos depois, quando a escola fez uma parceria com uma professora de dança, que passou a dar aulas gratuitas mediante o cumprimento da frequência. Certo dia, uma menina de 11 anos foi, mas se recusou a dançar.

Perguntada pela professora, contou que tinha receio de se sujar. A menina explicou que estava menstruada e utilizava papelão para conter o sangramento.

Foi naquele momento que a escola percebeu que o problema era ainda maior. Ele afetava também meninas que não faltavam frequentemente, mas que utilizavam peças inadequadas para a situação.

“Imagine você ser introduzida nessa dinâmica da menstruação, nos seus primeiros ciclos, e não ter condição de ter uma higiene adequada, e aí colocar papelão”, desabafa. “Hoje consigo falar disso sem me emocionar, mas já chorei muito, é muito degradante.”

A professora de dança ficou impressionada com a situação. Ao contar à diretora, soube do projeto escolar, que divulgou nas redes sociais. A iniciativa chamou a atenção da comunidade, que até hoje contribui com doações, de modo que todas as meninas passaram a ganhar kits mensalmente.

“Essa repercussão começou com uma criança usando papelão em 2019. De lá pra cá, quantas coisas essas meninas usaram. A criança com papelão rompeu a bolha que estávamos fechados”, comenta. “Uma criança submetida a uma situação degradante de higiene, que poderia ocasionar diversos problemas, até de saúde.”

A diretora passou a gerir outra escola municipal recentemente, mas a iniciativa segue sendo realizada por funcionários da Cosme de Farias. Os presentes são até mesmo entregues com uma mensagem motivacional, como “você é guerreira”, “você consegue” e afins.

Como Edicleia explica, a pobreza menstrual vai além. Também costuma estar ligada a um contexto social de falta de acesso a diversos recursos básicos. "Por trás, está uma menina que não se alimenta direito, que não tem acesso a serviços de saúde, que não tem saneamento básico em casa. E junto está uma família que vive na mesma condição.”

Sobre o veto de Bolsonaro ao PL que previa a distribuição de absorventes a pessoas de baixa renda, a professora se diz arrasada. “Não esperava muita coisa (do presidente), mas a minha esperança é que entrasse, mesmo que com alguns vetos”, comenta. “Sinto como se tivesse perdido algo.”

Edicleia defende que os absorventes sejam distribuídos em postos de saúde, consultas médicas e farmácias populares para a população de baixa renda, semelhante ao que ocorre hoje, por exemplo, com a camisinha. “E precisa estar na escola como um item do cotidiano, como o papel higiênico, o sabonete.”

Um relatório lançado em maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estima que cerca de 4 milhões de meninas brasileiras não tem acesso a itens básicos de cuidados menstruais nas escolas, como sabonete e até banheiros. Outras 713 mil vivem sem acesso domiciliar a banheiro ou chuveiro, o que também é um fator ligado à pobreza menstrual, enquanto 900 mil não têm água canalizada.


Texto de Priscila Mengue | O Estado de S. Paulo
Foto: reprodução O Estadão

 

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